quinta-feira, 15 de novembro de 2007

O mundo de dentro da casa da moça e a casa da moça de dentro do mundo.

Entrou leve e, pisando os calcanhares, largou os sapatos junto à porta. Não tinha nada contra o mundo lá fora, mas gostava muito mais de estar ali, com seus discos que os humanos não compreendiam e livros que os mesmos não tinham tempo de ler. Enquanto bagunçava o cabelo – que pro trabalho prendia num coque, lambia com gel e enfeitava com uma presilha de borboleta – largou a bolsa em meio às inutilidades da escrivaninha e se livrou dos colares e pulseiras que a prendiam naquele personagem decente e normal demais. Na cozinha pôs no fogo três frigideiras: queijo, ovo e calabresa. Voltou à sala e ligou o ventilador, para que o clima ameno não a pudesse impedir de afundar-se em cobertores e travesseiros. No vídeo cassete um filme antigo e mal dublado sobre caubóis norte americanos, que, por tê-la feito companhia em tantas outras noites, anunciava com a primeira aparição da donzela a hora de desligar o fogão. Nas primeiras vezes se encantava com a cena e acabava por deixar queimar a comida, mas agora era veterana e ia até a cozinha falando junto, em voz alta, a fala da personagem.
As pessoas de fora costumavam criticá-la freqüentemente. Na vizinhança reclamavam do barulho na sexta de noite e do cheiro de incenso; no trabalho, da sociabilidade e temperamento. Mas nada disso importava se ela estava em casa, pois sabia sozinha da mágica que guardava ali. Na verdade mesmo a casa não tinha nada demais. Por pouco não caía aos pedaços... Faltava tinta em muitos lugares e sobrava poeira em tantos outros, mas de verdadeiro já bastava o mundo depois do portão, e no fundo – veja bem, não mais “na verdade” – a casa era mesmo mágica. A moça entrava e nada mais importava. De lá de dentro olhava o mundo com deboche e muito se divertia, rindo das pessoas que de fora a olhavam com estranheza.
Voltou ao sofá e sentou com as pernas cruzadas. Um copo de suco e um pires sobre a mesinha e o sanduíche na mão, sem guardanapo, como já era tradição. Daí pra frente o filme não seria interrompido nem mesmo para ir ao banheiro ou buscar açúcar – fazia parte do ritual para uma noite suficientemente reparadora para a rotina da manhã seguinte, já que a casa a guardaria do mundo, não da vida...

3 comentários:

Maria Rosa Teles disse...

A moça não precisa de livros,discos e filmes antigos para se divertir.Ela tem a si mesma.

Anônimo disse...

:)

Anônimo disse...

Minha ânsia por mundo não me deixa entender a moça.. mas o meu lado que só quer vida, ele sabe bem.